Asas do céu...
Em um dia de muito calor e sedenta sede, um jovem rapaz pela estrada corria. Com intensa e imensa agonia, na metade do caminho. Chovia no momento. O rapaz tinha entre quinze e dezesseis. Estava com uma lanterna na mão. Corria, simplesmente, pelo acesso da velha estrada. Ligava a cidade do interior de São Paulo para a nova cidade, perto de Ribeirão Preto. O jovem tinha de entregar uma correspondência pelos abcessos da nova cidade, ainda sem nome. Eram três horas da tarde. Fazia já cinco horas que ele andava com um cântaro à mão. A vontade de beber aquele pouco de água, não satisfazia o rapaz. Ele queria achar uma cachoeira ou uma bica pela estrada. Eram trinta quilômetros de distância das duas cidades. A mais antiga e a mais nova. O jovem rapaz curtia novas aventuras, até que ouviu uma voz silenciosa e excedente. Na metade do caminho, sentiu um sono e resolveu sentar ao lado da estrada. Somente para descansar no momento. O sono era tanto pesado que o rapaz logo adormecera.
Passou-se um minuto, dois, trinta, uma hora e o rapaz não acordava. Ele andava pela cachoeira que imaginara. Com sôfrego andamento do tempo, o tempo escurecia pelo clarão. Ele estava andando, até que escorregou e caiu na água. Desmaiou.
Quando acordou, estava em numa cabana vestido com outras roupas e perto de uma lareira. Era noite. Gelava e fazia frio. Uma senhora cuidava dele, e aparentava ter uns sessenta anos. Era idosa e tinha um sotaque mineiro. Conduzia consigo uma caneca com chá quente e um cachecol para o rapaz. Ele se assustou, ela iniciou:
- Rapaz, você teve sorte de eu o achar na ribanceira, porque senão os lobos o teriam pegado facilmente.
- Lobos?! Quais lobos? – indagou o rapaz aflito.
- Existem por cerca destas redondezas - mas aplacou com severidade a mulher – criaturas da noite que caçam às escondidas cheirando cheiro de gente. Você tem de tomar muito cuidado com as pestes da trovoada.
A mulher ia explicando que eram criaturas terríveis, com corpos de lobos e rabos de cavalo. Quando alcançavam algum ser indefeso, eles avançavam e arrancavam a cabeça da vítima e jogavam pela cachoeira. Isto intimidava os expectantes e muitos fugiam ao trasvazar do crepitar da noite, com medo destas criaturas.
Surgiram caçadores destas criaturas e muitos se aventuraram pela mata crescente. Um rubescer de olhos para o horizonte, e, encontrava-se a morte. Certa noite eu fui sozinha buscar água no poço, que ficava há uns duzentos metros daqui. Tinha ainda o meu marido. Fui ao silêncio da noite pela madrugada adentro, e vi que tudo era espesso e escuro demais. Quando uma das criaturas avançou contra eu. Gritei e meu marido saiu com a espingarda para matar a criatura. Eu livrei-me do ser e este avançou contra meu esposo. Quando ele caiu com a criatura dentro do poço. Ouvi um tiro, dois, três, quatro, de repente, tudo cessou e o barulho também. Meu marido caiu e tentou atirar na criatura. Ela morreu e ele também. E decidi fechar o poço. Antes retirei um pouco do sangue da criatura e coloquei-a em um frasco de um vidrinho transparente. Para manter assim as criaturas longe daqui quando sentissem o tal cheiro. Vivo assim há vinte anos. Hoje, com sessenta e cinco, por onde ando, eu vou com o vidrinho para proteger-me deles. Acho que têm vivos ainda em torno de cinco deles. Muitos morreram de fome ou caçados.
A senhora disse tudo ao rapaz o que era importante saber. Ele teria de esquecer a correspondência porque machucara a perna esquerda. Ficaria de repouso por três dias. Era meia-noite do primeiro dia e um uivo, estridente e forte. Ela o acalmou:
- Tenha paciência meu jovem! Aqui tem um telefone para você ligar para dizer que está bem, porém irá se atrasar por causa do machucado. – e mostrou-lhe o aparelho.
Ele discou e falou com o padrinho dele, o qual distava na cidade nova. O padrinho queria o buscar, mas a senhora não deixou, pois disse que era muito perigoso. Então se passou o segundo dia. Pela manhã o rapaz caminhava cambaleando. Apoiado em uma muleta de madeira resinosa, feita pelo marido da mulher, anos antes. Quando ele tinha se acidentado no trabalho na madeireira. Olhava entrecortado pela janela da pobre casinha, e via beija-flores achegando-se perto da entre porta de trás. A senhora estava com o vidrinho ao pescoço, pendurado para afastar as criaturas daquela região. E começava a confabular com o rapaz:
- Sabe meu jovem, se não fosse este frasco, em alguns minutos um deles já estaria aqui.
- Eles ficam quantos metros longe daqui?
- No mínimo uns dois mil metros de distância por causa do cheiro do sangue. Posso andar em qualquer lugar e nenhum deles me alcança. Têm um ritual: quando um está perto, o outro se afasta. Eles têm vida solitária e geralmente vivem muito. Morrem de tiro ou de fome aguda, porque o sangue logo escasso da vítima do qual eles se alimentam. Incrível é sentir a vivacidade deles. Eu dei-lhes o nome de lobopex, não sei por qual motivo.
- Esses tais lobopex existem há quanto tempo?
- Pelo que ouvi de antigos moradores desta casa. Desde há cinco mil anos. Já foram na casa das centenas de milhares e hoje eles estão em extinção. Mas quando se reproduz, o efeito é catastrófico. Um gemido de uma fêmea deles pode ensurdecer uma pessoa. Insaciável sede de matar eles têm. Vingam-se com a menor das oportunidades quando um deles morre. Surgem do horizonte, pela vespertina. No outono se escondem por causa do frio e temem o fogo.
- O que vai sair de almoço hoje? – brincou o rapaz.
- Galinha assada com molho de manjericão. Arroz, feijão, alface, tomate, pudim de pão e groselha.
- Oba! Essa comida está com um bom cheiro e parece que não dá vontade mais de sair daqui. Vamos ao almoço.
Os dois almoçaram com muito gosto. Parecia avó e neto que não se viam há muito tempo, mesmo nem sendo parentes. O rapaz dormiu profundamente pela tarde, estava no final do segundo dia e a perna quase boa. Anoiteceu e de novo o uivo. O rapaz nem ligava mais para os lobopex. Queria ficar naquele lugar para sempre, entretanto, teria de entregar a correspondência na nova cidade onde morava o padrinho.
Amanheceu. Era o terceiro dia. O rapaz já estava andando perfeitamente, perto das onze horas da manhã. A idosa chegou-lhe pertinho e o acariciou pelos cabelos, um sentimento nobre. E cheio de ternura. Tomaram o café da manhã e o rapaz guardou algumas bolachas, rapadura, água, comida fresca e um cantil de água e tudo o mais que precisava para a partida. Ele partiria pela uma da tarde, ela o ia levar até a estrada e depois se despediria dele. Era um momento de tristeza a separação, mas também de retorno para a civilização.
Foram-se. Ao sair de casa, ela levou uma espingarda, água, munição e o vidrinho. Mais um véu porque o dia era quente. Caminhavam lentamente e ao silêncio da penumbra daquela floresta virgem. O rapaz andava lado a lado com ela, em uma trilha longa. Demoraria duas horas para chegar à estrada e o rapaz, de lá, seguiria sozinho.
Eram duas da tarde e os dois já estavam cansados. Quando repentinamente ela cai em um vão e perde o vidrinho com o sangue de lobopex. Contudo a espingarda ainda ao alcance, ela se recupera e fica assustada.
- Meu Deus! O que vamos fazer? Sem o vidrinho com o sangue seriam atacados pelas criaturas em breve.
- Vamos acelerar a trajetória e conseguir ajuda na estrada.
- Auuuuuuuuuu! Auuuuuuuuuu!
- Você ouviu?
- Sim. Vamos correndo rapaz!
Os dois, já apunhalados pelo medo, em um dedilhar de tempo corriam em busca de ajuda. A idosa já não aguentava mais andar. Os uivos e rosnados ficavam perto cada vez mais. Ela e ele corriam, largaram tudo no caminho, menos a carta e a espingarda com as munições. Medo, medo, medo. Era só o que sentiam, de repente, pula do alto de uma árvore um deles, um lobopex faminto de sangue e com sede de vingança.
Os dois recuaram lentamente e com espavorido medo, eram intimidados. A senhora apontava a arma na cabeça do animal, parecia ser uma fêmea, e atirou. Contudo ao mesmo instante a fêmea ao alcance dela se atirou e foi mordida no braço esquerdo. O rapaz pulou encima da fera e agitou-se em um vai-e-vem sem destino. Ele foi jogado para longe, e a espingarda também. As duas se atracavam em um vai-e-volta incrível. Raro ver uma senhora com tanta força nos músculos, mesmo ensanguentada. O rapaz aproveitou a briga para sorrateiramente alcançar a espingarda, de calibre grosso e bem feita e dar um fim na criatura. Não foi outra.
Aproximou-se dela e deu um tiro na região lombar da lobopex. Morreu no mesmo instante. Em seguida, pegou aos braços a senhora e caminhava com ela mais quinhentos metros. Era a estrada. Enfim estavam salvos.
Ele começou a chamar alguém para que os socorresse. E passava uma viatura com dois policiais e eles os ajudaram. A senhora foi levada para o hospital da nova cidade e o rapaz ficou em observação em outro quarto, esperando atendimento.
Pelo fato de ter perdido tanto sangue, desmaiou. Sonhava algo estranho, algo como que asas vindas do céu, que chegavam perto do corpo da mulher para levá-la até o marido, ao céu. Ela foi se levantando e caminhava pelo horizonte de uma estrada sem fim, ao qual não tinha início nem um fim.
Quando o pulmão dela se encheu de ar, ela acordou. O enfermeiro que estava a atendendo perguntou:
- Já se sente melhor minha senhora?
- Sim. Mas pensei que tinha morrido porque estava tendo um sonho e ia encontrar o meu falecido na outra vida. Vieram sobre eu como asas que caem do céu. Eram tão brancas e belas que quis tê-las, mas não era a minha hora ainda. E o garoto, onde está?
- Está no quarto ao lado e dorme tranquilamente. O padrinho dele o veio ver e buscar e recebeu a correspondência.
Curiosa, a velhinha perguntou ao rapaz uma coisa simples, mas estranha:
- Meu jovem rapaz, gostaria de saber o nome desta cidade onde estou porque jamais puis meus pés cansados neste lugar. Pode me dizer?
- Sim. Claro que posso dizer: o nome é Asas do Céu. Foi inaugurada há dois anos exatamente. O prefeito é justamente o padrinho deste jovem que veio com a senhora. Vocês dois deram sorte porque se ninguém tivesse passado, estariam em uma grande encrenca. A senhora perdeu muito sangue e quase morreu. Deu sorte!
- É, dei sorte mesmo!
Ela foi ver o rapaz no quarto e os dois se abraçaram. Um estava ao lado do outro, sempre se ajudando e sorrindo, depois da enrascada sofrida. E o rapaz, assim como ela também exclamou:
- É, dei sorte mesmo!
Anderson Carmona Domingues de Oliveira – 30/08/2013 às 16h38min
Gumer Navarro
Enviado por Gumer Navarro em 04/09/2013